Neurociência
Suzana Herculano-Houzel – Astrologia e autossugestão
Parece que, poucos dias atrás, os céus nos prepararam uma conjunção especial: a lua em Libra na casa sete, Júpiter e Marte alinhados em Aquário. Nessas condições, tem-se “The dawning of the Age of Aquarius”, como anunciava a canção do musical “Hair”, na qual “A paz guiará os planetas, e o amor dirigirá as estrelas”.
Não sei, não. Com o risco de incorrer na ira dos astrólogos, vou dizer com todas as letras: todos os estudos controlados de que tenho notícia, até os mais simples feitos em sala de aula e em cursos de estatística, refutam qualquer influência direta dos astros celestiais sobre nossa índole, personalidade ou destino. Sim, aquele mapa astral feito especialmente para a data e hora do seu nascimento “descrevia você perfeitamente” até a raiz dos cabelos.
Mas um mapa feito para a sua vizinha também serve para você, assim como um horóscopo bem feito se aplica a qualquer um (ou você acredita que só existam doze tipos de pessoas, e que o mesmo acontecerá a cada dia com 1/12 delas?).
Caímos feito patos em definições da nossa essência, sejam elas feitas por astrólogos, tarólogos ou cartomantes. Basta que elas contenham elogios genéricos o suficiente (“Você é uma pessoa bondosa”) e críticas positivas à nossa personalidade (“Você tem dificuldade em dizer não aos amigos”) para que até o mais cético dos humanos se identifique. Coisa do cérebro, que adora encontrar padrões em tudo o que vê -e cujas autoavaliações são sempre tingidas de cor-de-rosa.
A astrologia, contudo, pode ter uma influência indireta sobre nossos destinos -assim como a homeopatia, aliás (pronto, arranjei encrenca com duas classes profissionais no mesmo dia).
Ambas nos sugestionam, ou seja, levam o cérebro a crer que é um bom dia para decisões financeiras/um novo amor surgirá em breve/será preciso lutar contra opositores/as crises de alergia vão diminuir. E, assim, saímos de casa para encarar o dia já mais confiantes/amorosos/ belicosos/desestressados, e -espanto!- de fato tomamos boas decisões ou brigamos com tudo e com todos, conforme a profecia do dia.
Por isso, acho que o poder (comprovado, por sinal) da autossugestão deveria ser suficiente para que astrologia, cartomancia e similares fossem regulamentados: nada de previsões negativas ou catastróficas, por favor.
Quanto à Era de Aquário…
Até meu cérebro, descrente, foi sugestionado. Passei o dia todo cantarolando: “When the moon is in the seventh house…”
Suzana Herculano-Houzel, neurocientista, é professora da UFRJ e autora do livro “Fique de Bem com o Seu Cérebro” (ed. Sextante) e do site “O Cérebro Nosso de Cada Dia”
RESPOSTAS DA CNA
POR BARBARA ABRAMO
Horoscopista da Folha de São Paulo e da UOL
Escrevo para deixar registradas algumas observações sobre pontos mencionados na coluna de hoje da Dra. Suzana.
Em primeiro lugar, algumas considerações rápidas sobre a suposta chegada da Era de Aquário. Há cerca de duas semanas, fui procurada por um jornalista desta Folha para comentar uma mensagem eletrônica que estava sendo distribuída a respeito da “era de Aquário e a canção do musical ‘Hair’”. Expliquei então que se tratava de pura bobagem, desmerecedora de crédito. Sendo sucinta, repito: Os céus não prepararam nenhuma conjunção especial, a Lua não estava na casa 7, e, apesar de Marte e Júpiter estarem alinhados – como “prevê” a letra da música, isso é ocorrência nada rara. A tão famigerada Era de Aquário vai demorar pra chegar (ainda faltam pelo menos uns 200 anos).
Esclarecido esse ponto, passo para o que julgo mais importante no artigo da Dra. Suzana: a suposta “influência” dos astros em nossas vidas. Nenhum astrólogo que saiba o que está fazendo e estude sua profissão “acredita” na “influência direta dos astros celestiais sobre nossa índole” pelo simples fato de que, para nós, os astros são sinalizadores e não provocadores de fatos ou traços de personalidade.
Astrologia e estatística não combinam, porque a astrologia não é uma ciência nos sentidos positivista e pós-iluminista do termo. Tentar “provar” a astrologia pelos meios da ciência será sempre um esforço em vão, já que se trata de uma arte, uma linguagem simbólica. Se fosse usar termos científicos, porém, diria que a astrologia trabalha mais com o conceito de correlação do que com o conceito de causalidade. Ou seja, não é que Vênus exerça “influência direta” sobre a garganta e a voz, mas, após centenas de anos de observações, astrólogos perceberam que, sempre que Vênus está no signo de Touro nascem pessoas com mais talento/interesse para cantar etc.
Sim, a astrologia pode ser uma ferramenta de auto-sugestão – assim como os placebos empregados pela medicina – e baseia-se em modelos, que são então adaptados a cada caso. Assim como a medicina ou a psiquiatria se valem de modelos ideais de comportamentos/doenças/traços de personalidade, a astrologia faz o mesmo. A botânica e a química também se valem de modelos e padrões, e nem por isso são julgadas menores. Talvez os neurocientistas descubram um dia por que o ser humano concebe categorias, modelos formais para entender seu mundo. Não vejo porque a astrologia tenha de ser diferente, se é produto da mente humana.
O fato é que, quando um médico discorre sobre uma doença num artigo de jornal, apontando seus principais sintomas e quais são os comportamentos de risco que podem levar os leitores a adquiri-la, não é acusado de tentar “sugestionar” os leitores, apesar de não tratar em sua coluna de cada possível diagnóstico diferencial, padrão de evolução da doença e prognóstico, que necessariamente variam de acordo com a idade, histórico, comportamento de cada paciente. O horóscopo (e sou responsável por dois deles, tanto o da Folha Ilustrada quanto o da UOL) também é um orientador geral, que pode ser utilizado de muitas formas, inclusive como instrumento de auto-sugestão, mas seu objetivo é ser mais um serviço de utilidade publica e de orientação para o publico, nem pretende substituir a analise do mapa astrológico do nascimento que é individualizado.
O problema desses nossos tempos é que um astrólogo nunca teria espaço num veículo de comunicação para debater neurociência ou criticar modelos ou padrões de classificação científica, mas profissionais de outras áreas se dão a liberdade de falar de astrologia como se entendessem do assunto. E, como as afirmações equivocadas no artigo da Dra. Suzana demonstram, esse nem sempre é o caso.
Meus clientes – empresários, terapeutas, políticos, sociólogos, estatísticos, médicos, artistas, educadores, arquitetos, psicólogos, engenheiros, corretores da bolsa de valores – me procuram para discutir suas escolhas de vida, e não para debater se a astrologia é comprovável segundo os critérios de suas respectivas práticas profissionais. Se o fizessem, seria como se eu procurasse um ortopedista por causa de uma dor no joelho e, constatada uma inflamação na rótula, dissesse a ele que seu diagnóstico só pode estar errado porque Saturno está em trígono com o Sol e, portanto, não é possível que eu tenha problemas no joelho. Seria um diálogo de surdos, que é o que me parece a situação atual do debate entre os astrólogos e os cientistas.
POR ALEXEY DODSWORTH
Diretor Técnico da CNA
SOBRE AUTORES E AUTORIDADES
Por mais diferentes que sejam as culturas e por mais mutáveis que sejam as épocas, há uma falácia lógica que é praticamente uma constante na história da humanidade. Trata-se de uma forma por demais persuasiva de recurso retórico que convence e seduz desavisados. Refiro-me, aqui, ao “apelo à autoridade”. É claro, o tipo de autoridade muda de século para século. Se na Idade Média eram os sacerdotes e Papas as vozes da verdade que podiam validar ou invalidar saberes, nos tempos modernos temos outro tipo de poder sacerdotal: o cientista. É algo que se impregnou com força ao imaginário coletivo: se fulano é PhD em física nuclear, ele não apenas pode, como deve falar sobre tudo, incluindo-se no rol deste “tudo” até mesmo as coisas sobre as quais ele desconhece de forma imensa. É o caso, por exemplo, do artigo escrito pela neurocientista Suzana Herculano-Houzel para o jornal “Folha de São Paulo”.
Vale aqui salientar que nem todo apelo à autoridade é injustificado. Não faz o menor sentido duvidar aprioristicamente, por exemplo, dos conselhos médicos dados por um médico gabaritado. Do mesmo modo, se eu quero resolver um problema elétrico, procuro um eletricista, e não um artista famoso. O problema não é a autoridade, e sim a extensão indébita desta. Digamos que Stephen Hawking, um dos homens mais inteligentes do planeta Terra, resolva escrever um livro sobre culinária. Nada o impede de fazê-lo, pois vivemos num mundo livre para emitir nossas opiniões. Do mesmo modo, Suzana Herculanotem livre direito de dizer o que pensa sobre astrologia, culinária, moda, música, religião, kung fu e ouriços do mar – todas essas coisas completamente fora do âmbito de seu neurocientífico saber. Não estou aqui defendendo, de forma alguma, que as pessoas se abstenham de opinar sobre coisas que chamam sua atenção. Eu mesmo sou um palpiteiro de mão cheia. Entretanto, ao dar palpites, não evoco minhas muitas titulações como recurso impressionante, salvo quando o contexto assim pede.
Volta e meia nos deparamos com capas estrondosas de revistas, que dizem coisas do tipo “Caetano fala sobre política” (lembrem: Caetano é um excepcional cantor, mas não é político), ou “Veja a dieta de Deborah Secco” (lembrem: Deborah é uma gatinha e é bem magra, mas não é nutricionista). Se o problema não está em opinar, onde estaria? Pois voltamos, então, ao ponto do meu texto: o problema está no apelo à autoridade. A questão é: por que eu deveria tomar como referência as opiniões de alguém me baseando apenas em sua fama ou em suas titulações? E mais: suas eventuais titulações o tornam um conhecedor do assunto sobre o qual ela opina?
Ao longo do artigo, Suzana Herculano demonstra desconhecer o assunto “astrologia” completamente. Limita, por exemplo, a astrologia à questão dos doze signos. Além disso, demonstra uma visão superficial da homeopatia, que é inclusive uma especialidade médica. Ambos os saberes (astrologia e homeopatia) contam com um sem-fim de pesquisas que demonstram a validade de suas práticas. QueSuzana Herculano desconheça tais pesquisas e desconheça o que vem a ser de fato “astrologia” e “homeopatia”, isso não me espanta. Conheço pessoas que criticam a psicanálise sem sequer terem lido a orelha de um livro do Freud, e o mesmo fazem em relação a quase tudo, inclusive astrologia e homeopatia. O que me espanta e me preocupa é que alguém possa considerar os ditos de Suzanacomo uma pretensa verdade porque ela, sendo neurocientista, em tese pode falar sobre tudo com grande autoridade. Não. Suzana, como neurocientista, pode dar um show em neurociência. Mas, no que tange à astrologia, precisa ler e estudar muito ainda, pois não sabe nada acerca deste assunto.
A despeito de tudo o que escrevi, vale salientar que Suzana não se equivoca ao afirmar que muito do que se lê em astrologia é auto-sugestão. De fato, se aquele que busca uma leitura astrológica não for suficientemente amadurecido, será facilmente sugestionável e acatará como verdade tudo o que seu astrólogo lhe disse, sejam as coisas corretas ou incorretas. Mas isso não é um problema da astrologia, e sim de alguns maus astrólogos, que fazem leituras genéricas, ajustáveis a qualquer ser humano. Mas quem estuda astrologia seriamente sabe que as descrições não cabem para todos. Minha história com a astrologia, inclusive, começa com o cálculo incorreto do meu mapa. Imediatamente reconheci que nada do que estava sendo dito condizia com minha natureza e inclinações, e prontamente rejeitei tudo. Anos depois, ao conhecer um astrólogo competente (Marcos Ferraz, já falecido), deparei-me com a análise correta de minha carta astral de nascimento. Tudo então fez sentido.
Por fim, devo dizer que não há razão para enfurecimentos em relação ao texto da pessoa SuzanaHerculano. Ela pode escrever sobre o que quiser, onde lhe dêem espaço. Há razões para preocupações e “antenas ligadas”, isso sim, para o texto da neurocientista Suzana Herculano. Um recado para ela: dona Suzana, aguardo com ansiedade legítima e com boas esperanças um artigo seu sobre neurociência. Apesar de nunca ter lido sobre o assunto, imagino que se trate de um saber bem fundamentado.
Alexey Dodsworth – astrólogo, bacharel em Filosofia e paciente satisfeitíssimo de homeopatia há mais de quinze anos (únicas titulações que cabem no presente artigo).